Sempre achei o Diego um excelente criador de histórias. Daqueles rápidos, que com um estalo aparentemente banal já cria um argumento e, com poucas palavras, consegue habilmente fazer você visualizar um cenário que brotou da cabeça dele em poucos segundos. Já ouvi inúmeros desses causos inventados de uma hora pra outra. E tão ligeiros quanto nasciam, logo morriam, sem continuidade.
Ouvindo seu primeiro álbum, que acaba de ser lançado de forma independente, dá a impressão de que ele finalmente, e felizmente, resolveu dar atenção a alguns daqueles estalos. Oito deles viraram letras e músicas que se tornaram o disco “Cuidado ao ficar muito à vontade” – uma sequência de narrativas ambientadas em alguns daqueles cenários da cabeça dele, mas agora com trilha sonora. E você vai perceber que tudo se passa em algum momento muito próximo ao agora, 2019.
Constatar isso pode ser triste. Afinal, esses belos textos musicais são tão certeiros quanto pessimistas. Ou com uma dose de otimismo reverso, como já definiu o colega de banda, Vinícius Nisi. São inúmeros trechos que descrevem muito bem o mundo e as relações no pós-golpe. “Nem sempre a sabedoria e a idade são proporcionais”, recita em “A ficha cai”. Ou ainda “a memória tem o péssimo hábito de enganar”, como canta na faixa “Agora”.
Aliás, o tempo parece ser um fio condutor desse disco. A tríade antes / agora / depois aparece de diferentes formas nas canções compostas nestes últimos meses. Às vezes como nostalgia, em outras como decepção e angústia, mas também como esperança. Esse calendário musical de oito páginas ganhou arranjos executados pelo trio formado por Douglas Vicente (bateria), Vinícius Nisi (sintetizadores, teclado e bozouki) e Ruan de Castro (baixo). A produção é de Rodrigo Lemos, repetindo a bela parceria do EP “Cabresto”, lançado em março de 2018.
Dar o play já te joga na história correndo. “O que é que falta” é a faixa que abre o disco com a fórmula bateria reta, baixo hipnótico e riff de guitarra para Diego falar sobre a rotina egoísta, na qual a gente até sabe do sofrimento de alguém, mas acaba ignorando porque já tem dúvidas demais. O refrão com um tom aterrorizado se pergunta “o que é que falta em nós?”.
A resposta talvez venha logo depois, na segunda música. “A ficha cai” tem um balanço com um pé no afrobeat para dizer que não há mais espaço para sermos isentões. A ficha já caiu, a gente sabe, mas precisamos nos posicionar para que algo aconteça a partir disso. E aqui nasce o nome do álbum. Ficar muito à vontade pode ser perigoso se a ficha cair tarde demais. “Você não precisa querer salvar o mundo pra entender que tá tudo cagado. Entre conservar o velho pensamento e a juventude, eu já escolhi o meu lado”, decreta o músico.
“Não vou buzinar” é o primeiro respiro de leveza e otimismo do álbum. Groove bom e lento que se passa durante poucos segundos após o semáforo ficar verde. Esse curto espaço de tempo já seria suficiente para o Pateta no trânsito espumar pela boca de raiva. Mas a gente se dá conta de que essa revolta é apenas uma admissão de culpa por não estarmos bem resolvidos. E a falta de empatia pode ser mais uma coisa que falta em nós, respondendo à pergunta inicial. Ao ouvir, é fácil visualizar o motorista da história, perplexo ao se deparar com alguém preocupado com ele, mas igualmente perdido nesse mundo. O refrão festivo e dançante disfarça esse desespero mútuo, como se o vidro do carro fosse um espelho.
Depois das três primeiras já dá para sacar que a dobradinha com o produtor Rodrigo Lemos foi a melhor possível. E ainda teve a parceria com Valderval Oliveira, responsável pela mixagem e masterização. Os timbres estão excelentes, encaixando-se e rearranjando-se de diferentes maneiras a cada faixa, a cada mudança de clima, a cada mudança de cenário. Por mais que as ambientações sejam diferentes, há uma coesão a cada novo capítulo que surge.
E o próximo capítulo, encerrando um simbólico Lado A do disco, vem nos falar que tudo é uma questão de tempo – “até você desvendar seus pais”, por exemplo. A base lenta e etérea da música serve de suporte para um vocal quase falado, convidando mais uma vez a ficha a cair. E, como lembra o refrão num crescente com distorções e uma dose de psicodelia, “agarrada à toda certeza, cresce uma dúvida”. Disso podemos ter certeza.
“Onde cê tá com a cabeça? Ou melhor, por onde anda o seu coração?” Difícil responder. A cabeça deve estar em algum grupo do WhatsApp, decepcionada com alguém que já lhe foi querido. O coração está batendo, mas bem fora de sintonia a outros corações que já estiveram na mesma frequência. “Treta” é essa faixa, que vai te levando à conclusão de que pode haver uma distância infinita entre princípios e o fim. Ou melhor, entre pessoas que já estiveram bem próximas.
As três finais do disco são minha parte preferida do trabalho. “Wall Street” é justamente aquele momento contador de histórias do Diego. O clima country e o vocal debochado, com momentos à la Zé Ramalho, te colocam rapidamente em alguma cidade do interior, onde quatro cavaleiros furam o sinal com suas SUVs prateadas, acima do bem e do mal. Dá vontade de dançar com a mão no cinto fazendo barulho com as botinas no chão. É como se o Johnny Cash tomasse um caldo de cana no boteco da praça da igreja. “Ontem à noite eu senti a mão invisível do mercado, que me estrangulava”, canta. Quem já teve paralisia do sono sabe que essa pode ser uma ótima analogia ao capitalismo.
“Dias bons” é um cenário, é um cheiro, é uma lembrança gostosa. Música lenta para ouvir dirigindo numa tarde de sol. Aqui as palavras soltas vão formando todo o contexto em uma simplicidade quase irritante de tão bonita. “Dias bons, ramo de hortelã esparrama feito mato no quintal”, descreve. Quem nunca rezou para que aquele domingo delicioso não terminasse nunca? Pois bem, esse exercício de reflexão sobre o tempo ganha um refrão minimalista, mas que diz exatamente tudo: “dias bons passem devagar”.
A última do álbum é a minha favorita desde que a ouvi pela primeira vez – uma sintonia máxima entre letra, melodia e interpretação. A faixa “Agora” mais uma vez remete ao tempo, à dança entre o novo e o antigo. “De que adianta fuçar a gaveta buscando a resposta se a chave pra tudo está sempre tão longe do lar?” pergunta. Trata-se de uma música bela, lenta e de tranquila lucidez, após levantar tantas dúvidas, tristezas e agonias no decorrer do disco. “Enquanto o passado confronta o presente, o futuro tem calma”, conclui. “Esteja aqui agora. E fique presente, aproveite”, são as últimas frases dessa narrativa de oito músicas, num gentil convite ao momento.
Essa meditação no final do álbum mostra que Diego está em paz com seus fantasmas e que, apesar da advertência estampada na capa do disco, encontra-se à vontade na sua caminhada à procura da chave para tudo.
Heitor Humberto é produtor cultural, jornalista, músico e era integrante da Banda Gentileza.
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